Rio de Janeiro – A descoberta de dois canhões do início do século 17,
durante escavações na região portuária da cidade, surpreendeu tanto
historiadores militares quanto arqueólogos, que, desde fevereiro de
2011, buscam vestígios do comércio escravagista do século 19.
Segundo a professora Tânia Andrade de Lima, que coordena os trabalhos
na região, a existência de uma bateria de canhões na orla, próxima ao
Morro da Conceição, era desconhecida pela história. Ela disse que os
canhões, aterrados ao longo dos anos, podem ser os mais antigos do
Brasil. Pesando cerca de 1 tonelada, cada, os canhões faziam parte de um
esquema de defesa num período em que o Rio de Janeiro foi alvo de
muitas tentativas de invasão.
“Quando a bateria foi desativada, não dava para sair carregando [os
canhões] e a tendência foi jogar no mar. A Rua Sacadura Cabral, nesta
época, era mar. Com o passar do tempo, a área foi sendo aterrada e eles
[os canhões] foram cada vez mais afundando. Estão claramente arrastados e
deslocados. Não estão nem voltados para o mar, mas para o Morro da
Conceição. Estamos falando dos primeiros tempos em que essa área era
fortemente militarizada”, relatou a antropóloga.
As peças estão sendo analisadas por antropólogos do Museu Nacional, que
continua com os estudos, a limpeza e o processamento de objetos do
século 19 que já tinham sido encontrados. O grupo já reuniu material
suficiente para remontar parte da história dos escravos que chegavam da
África e eram vendidos no Cais do Valongo, na zona portuária, desde que o
complexo foi construído, em 1811, até sua desativação, em 1843, quando a
área foi reformada para receber a imperatriz Teresa Cristina para o
casamento com dom Pedro II.
De acordo com Tânia Lima, responsável pelas escavações na área de 2 mil
metros quadrados, cerca de 500 mil escravos passaram pelo cais durante o
período de comércio humano na região. “Em grande parte, os objetos
encontrados são relacionados à proteção dos corpos, que eram
brutalizados, violentados de todas as formas e maneiras. Era preciso
buscar todas as formas para encontrar a resistência necessária diante de
tanta violência”, ressaltou a professora.
Ela disse que o Valongo funcionava como um “grande complexo do negócio
feio da carne humana”. Depois de uma travessia transatlântica, os
africanos chegavam ao cais em condições desumanas. Muitos morriam no
trajeto e eram enterrados, “em situações impiedosas”, no Cemitério dos
Pretos Novos, nas proximidades do cais. O cemitério tinha esse nome por
abrigar os corpos de negros recém-chegados.
Nos navios, outros escravos adquiriam doenças contagiosas e eram
encaminhados ao lazaredo, no Morro da Saúde, também na zona portuária.
Quando se recuperavam, depois de um período de quarentena no lazaredo,
eram encaminhados para o mercado do Valongo, onde hoje é a Rua Camerino,
e ficavam expostos para venda e destinados a diferentes pontos do país.
Como muitos negros continuavam nas imediações, trabalhando no cais, por
exemplo, a região ficou historicamente conhecida como “Pequena África”.
De acordo com Tânia Lima, diferentemente do que foi reunido ao longo
dos anos sobre a escravidão e a trajetória dos negros no país, no local
pesquisado, está sendo possível reunir objetos originalmente africanos.
Segundo a arqueóloga , eles tinham tão pouca coisa, que sobreviviam
dos restos das classes dominantes. "Do caco da garrafa de vidro, eles
lascavam a borda e faziam lâminas de barbear. Não tinham nada que podiam
dizer que era deles. Mas, no Valongo, não. No Valongo tem muita coisa
que era deles, e isso nos leva aos sentimentos vividos pelos grupos,
como medo e esperança e a defesa diante de tanta brutalidade. Tudo isso
está materializado em nossa frente. E é muito comovente.”
O registro arqueológico que está sendo elaborado revela as diferentes
origens dos escravos que chegavam ao Valongo. Pelas peças, é possível
identificar práticas mágico-religiosas muito distintas, e toda a
diversidade de crenças aparece nos amuletos resgatados. “Há miniaturas
de orixás, muita coisa dos bacongos (Centro-Oeste da África), com
materiais protetores como âmbar, corais e cristais. Outras, de origem
mais difusa, com práticas europeias, como as figas, que associamos aos
africanos, mas a origem delas é a Europa”, afirmou Tânia.
Os arqueólogos do Museu Nacional também encontraram diversos búzios de
origem africana, que não existem no Brasil. De acordo com os
pesquisadores, os búzios podem ter sido usados tanto em práticas
religiosas, quanto como adorno dos corpos ou como moeda, como eram
usados na região do Pacífico.
Por Carolina Gonçalves
Repórter da Agência Brasil
Repórter da Agência Brasil
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